quinta-feira

A onda de Hokusai...

A escrita de Mishima lembra-me sempre este quadro de Hokusai. "Ah, é porque são os dois japonocas!" ladrarão vocês do fundo do poço da ignorância em que estão mergulhados. "Sim" respondo eu, "mas não só."

Escutem.

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Lobo Antunes disse na excelente entrevista ao Público que se foi tornando num melhor escritor com o passar dos anos, que cada livro seu foi um melhoramento do anterior, que foi percebendo que o silêncio é o acto supremo da arte e que se deve descarnar a forma até chegar ao osso do conteúdo, eliminando o superficial.

De facto, se olharmos para o Memória de Elefante, o primeiro livro deste autor, vemos um puro exercício de estilo, uma prosa riquíssima mas uma ausência total de ‘história’, de conteúdo e de emoção. Um livro vazio, muito ruidoso, e que me desiludiu. Fiquei contudo siderado com a capacidade de escrita, as metáforas que utilizava e o domínio magistral da língua portuguesa. Estava ali um grande escritor em potência, sem dúvida.

Lobo Antunes disse também que “podia morrer já”.

Yuko Mishima terá certamente pensado no mesmo também, a 25 de Novembro de 1970, dia em que decidiu fazer o ritual do Seppuko (estripou-se com um sabre samurai). Se não o tivesse feito, teria ganho o prémio Nobel da literatura pois era (e é) o maior escritor japonês do sec. XX. As razões porque o fez não são claras. Terá sido porque cresceu num meio militar, em que a honra era o valor máximo, e essa honra foi manchada ou posta em causa. Também foi por manifesto contra a decadência da cultura tradicional japonesa, cada vez mais perene ao mundo e aos valores ocidentais. O que é certo é que essa morte ritual é indissociável da sua escrita, até porque nos últimos livros o Seppuko aparecia como uma obsessão.

Se é de silêncio que falamos então olhemos para Mishima ou Hokusai. Este quadro A onda é como um livro do Mishima. Para além de termos o mar, tema recorrente na obra de Mishima (“O Marinheiro que perdeu as graças do mar”, “Tumulto das Ondas” etc.), o quadro é contido e frio. Há uma ameaça gelada, paralizada. O momento é dramático mas a quebra da onda é-nos projectada na imaginação. Não é explícita.

Nos livros de Mishima sente-se essa ameaça constante e também, a meio do livro, estamos a projectar os desastres iminentes. É angustiante. As histórias, normalmente de amor, parecem sempre ameaçadas de uma nuvem de tragédia que vai em crescendo até um climax final. Os seus livros têm essa influência clássica, ocidental.Tal como os quadros de Hokusai. De facto, Hokusai terá estudado a perspectiva com os quadros dos pintores holandeses contemporâneos. Este “A Onda” é do início do século XIX.

A frieza, a calma e o ritmo a que Mishima conta as histórias corta-nos a respiração. Não há nada acessório. É uma escrita fortemente visual. Mishima conta uma história, é só isso que faz, humilde e magistralmente. Sentimos que Mishima sofre ao contá-la, pelo amor às personagens que sofrem, pelo que quer ‘acabar com aquilo depressa’.

A arte de Mishima distingue-se da ocidental em vários pontos. Tal como o cinema de Kurosawa é particular. Há uma delicadeza e um sentido estético apuradíssimos. A arte de Mishima e Hokusai é perturbante e moderna, mas ao mesmo tempo depurada, limpa e ritualizada. Tem uma forma intemporal e nobre mas com essas formas aplicadas ao âmago das grandes questões humanas como o amor, sexo, morte, violência, ódio, mistério, sobrenatural e destino, que são dissecadas de forma explícita e por vezes friamente cruel.

Eu, como aspirante a escritor, vou tomando notas...
# posted by O Bom Selvagem : 10:57 AM