Vejamos alguma da poesia de Eugéneo de Andrade. O poeta das imagens ligadas aos elementos naturais, à plenitude, à energia vital. Um universo de sensibilidade. Lê-lo é a melhor maneira de o manter vivo e actual..
- Conhecemos mal Eugéneo de Andrade, mas do pouco que conheço agrada-me. Sei que começou escrevendo com humildade. Lá foi para as bibliotecas públicas ler e ler e ler. Quando julgava que já sabia umas coisas passou a escrever. Também no sítio onde lia - passou a escrever. Feliz coincidência. Depois, para se lançar, escreveu uma carta a um poeta já consagrado, António Botto, nascido na Concavada, no concelho de Abrantes. Isto diz-me qualquer coisa. Botto deu-lhe estímulo e reconheceu o seu trabalho. Eugéneo sentiu-se confiante, e doravante ninguém mais o agarrou. Produziu, produziu, notabilizou-se intra e extra-muros. Homem duma sensibilidade aguda, de tal modo que tinha de se evadir das pessoas por estas serem tão amáveis para com ele. Enfim, é do alto da nossa ignorância poética que aqui me curvo perante a sua morte: poeta de voz singular, com uma exigência musical extrema e apuradíssima, foi, de facto, um grande poeta do séc. XX - que assim também fechou para balanço. Estamos todos de luto branco. Foi um poeta solar já que dedicou muito do seu pensar aos elementos da natureza, ao encanto da Mãe natureza cuja beleza nos tem dado toda a capacidade de sonhar. Mas melhor do que estas toscas palavras, meio envergonhadas por falarem do que não sabem - viajemos um pouco pelo seu universo poético.
Passamos pelas coisas sem as ver,
gastos, como animais envelhecidos:
se alguém chama por nós não respondemos,
se alguém nos pede amor não estremecemos,
como frutos de sombra sem sabor,
vamos caindo ao chão, apodrecidos.
É urgente o amor.
É urgente um barco no mar.
É urgente destruir certas palavras,
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.
É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.
Cai o silêncio nos ombros e a luz
impura, até doer.
É urgente o amor, é urgente
permanecer.
Entre os teus lábios
é que a loucura acode,
desce à garganta,
invade a água.
No teu peito
é que o pólen do fogo
se junta à nascente,
alastra na sombra.
Nos teus flancos
é que a fonte começa
a ser rio de abelhas,
rumor de tigre.
Da cintura aos joelhos
é que a areia queima,
o sol é secreto,
cego o silêncio.
Deita-te comigo.
Ilumina meus vidros.
Entre lábios e lábios
toda a música é minha.
Diz homem, diz criança, diz estrela.
Repete as sílabas
onde a luz é feliz e se demora.
Volta a dizer: homem, mulher, criança.
Onde a beleza é mais nova.
É na escura folhagem do sono
que brilha
a pele molhada,
a difícil floração da língua.
Música, levai-me:
Onde estão as barcas?
Onde são as ilhas?
Procura a maravilha.
Onde um beijo sabe
a barcos e bruma.
No brilho redondo
e jovem dos joelhos.
Na noite inclinada
de melancolia.
Procura.
Procura a maravilha.
A boca,
onde o fogo
de um verão
muito antigo
cintila,
a boca espera
(que pode uma boca
esperar
senão outra boca?)
espera o ardor
do vento
para ser ave,
e cantar.
Levar-te à boca,
beber a água
mais funda do teu ser -
se a luz é tanta,
como se pode morrer?
Sê tu a palavra
1.
Sê tu a palavra,
branca rosa brava.
2.
Só o desejo é matinal.
3.
Poupar o coração
é permitir à morte
coroar-se de alegria.
4.
Morre
de ter ousado
na água amar o fogo.
5.
Beber-te a sede e partir
- eu sou de tão longe.
6.
Da chama à espada
o caminho é solitário.
7.
Que me quereis,
se me não dais
o que é tão meu?
Colhe todo o oiro
Colhe
todo o oiro do dia
na haste mais alta
da melancolia.
Ainda sabemos cantar,
só a nossa voz é que mudou:
somos agora mais lentos,
mais amargos,
e um novo gesto é igual ao que passou.
Um verso já não é a maravilha,
um corpo já não é a plenitude.
Nunca o verão se demorara
assim nos lábios
e na água
- como podíamos morrer,
tão próximos
e nus e inocentes?
Devias estar aqui rente aos meus lábios
para dividir contigo esta amargura
dos meus dias partidos um a um
- Eu vi a terra limpa no teu rosto,
Só no teu rosto e nunca em mais nenhum
De palavra em palavra
a noite sobe
aos ramos mais altos
e canta
o êxtase do dia.
Foi para ti que criei as rosas.
Foi para ti que lhes dei perfume.
Para ti rasguei ribeiros
e dei ás romãs a cor do lume.
Húmido de beijos e de lágrimas,
ardor da terra com sabor a mar,
o teu corpo perdia-se no meu.
(Vontade de ser barco ou de cantar.)
Sê paciente; espera
que a palavra amadureça
e se desprenda como um fruto
ao passar o vento que a mereça.
Hoje roubei todas as rosas dos jardins
e cheguei ao pé de ti de mãos vazias.
À breve, azul cantilena
dos teus olhos quando anoitecem.
Eram de longe.
Do mar traziam
o que é do mar: doçura
e ardor nos olhos fatigados.
A raiz do linho
foi meu alimento,
foi o meu tormento.
Mas então cantava.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes!
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos.
Era no tempo em que o teu corpo era um aquário.
Era no tempo em que os meus olhos
eram os tais peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco, mas é verdade:
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor...,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus